Arquitetura do acolhimento: a dimensão subjetiva dos projetos de assentamentos para migrantes e refugiados

A ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, estima que em 2020 o número de pessoas obrigadas a deixar suas casas ultrapassou a marca de 80 milhões, o que equivale a mais ou menos 1% da população mundial. Destes, 67% são de apenas cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar. Os motivos são inúmeros, desde conflitos bélicos até crises econômicas, políticas, ecológicas ou climáticas.

Embora seja um fenômeno mundial, baseado em dimensões geopolíticas, jurídicas e sociais, há também neste tipo de migração uma dimensão subjetiva, principalmente, porque os processos identificatórios de cada indivíduo se orientam a partir dos sistemas simbólicos que o rodeiam. Ou seja, além de enfrentar as dificuldades que o levaram a sair do seu país de origem, o refugiado também precisa lidar com os efeitos subjetivos agravados pela condição de “estrangeiro”, deixando-o à margem do sistema de representações simbólico-culturais estabelecido.

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Este processo de migração – deslocamento, chegada e adaptação – requer, portanto, o enfrentamento de inúmeros desafios de qualidade sociopolítica, cultural e psíquica e está marcado por uma sequência de lutos e perdas, sendo a primeira delas o idioma, passando por várias outras de ordem cultural, comportamental, religiosa, e, porque não, ambiental, que culminam no conflito com a sua própria identidade. Segundo a professora Lucienne Martins-Borges, pelo caráter involuntário e repentino do deslocamento, os refugiados transportam consigo muito pouco do que, até então, caracterizava sua identidade, o que, por sua vez, pode gerar tanto uma harmoniosa bricolagem cultural quanto uma esquizofrenia identitária.

Aproximar-se dessa dimensão subjetiva que a condição de refugiado traz consigo é fundamental para entender que ambiente é este que precisa ser criado nos assentamentos e espaços de acolhimento. Um lugar que fornece não somente o amparo físico, mas que precisa inspirar segurança e esperança. Qual, então, seria o papel da arquitetura? Como seria uma arquitetura de acolhimento?

Segundo a ACNUR, seu objetivo principal é encontrar “medidas que garantam que os direitos humanos básicos dos refugiados sejam respeitados e que lhes seja permitido viver em condições dignas e seguras que os ajudem a encontrar uma solução a longo prazo”. Nesse sentido, o que se vê hoje nos assentamentos é o que Bauman caracteriza como um estado contínuo de temporalidade ou a “permanência da transitoriedade”. São arquiteturas de intervenção imediata, utilizadas unicamente no período de reabilitação territorial.

Ian Davis, no livro Arquitectura de Emergencia, afirma que este tipo de arquitetura é compreendido como algo transitório, temporário e não conclusivo, destinando-se a não se prolongar por muito tempo, ou seja, o abrigo tem de ser considerado um processo, e não um fim.

Aproximando-se das estratégias projetuais aplicadas hoje em dia nos assentamentos, a Unidade de Habitação para Refugiados (RHU), Better Shelter, deselvolvida em parceria com a IKEA, é um dos modelos mais utilizados. Sua estrutura consiste em um quadro de aço revestido com isolamento de painéis de polímeros leves que podem ser montados em menos de quatro horas. Devido à natureza modular, recursos adicionais também podem ser integrados ao projeto, como uma parede com energia solar capaz de acender uma lâmpada ou abastecer uma tomada em formato USB para carregar um celular. Cada abrigo é projetado para uma vida útil de 3 anos e, ainda que precária, a vida nas RHU é um salto em relação aos abrigos em tendas. Para as mulheres significa, inclusive, proteção em relação ao assédio sexual.

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Assentamento Roraima. Cortesia de ACNUR

Apesar das grandes vantagens desse sistema, muitas críticas têm sido levantadas, como o fato de ser uma estrutura importada e, por isso, muitas vezes não atende às exigências climáticas de cada região. Fica, portanto, a cargo de cada região analisar a viabilidade de algum tipo de intervenção ou modificação como, por exemplo, em Roraima, no Brasil. Lá, a ACNUR implementou pela primeira vez janelas extras com materiais disponíveis no mercado locais e com dimensões superiores às originais. O propósito foi aumentar a circulação cruzada de ar por se tratar de uma região com temperaturas elevadas durante todo o ano, como afirma a arquiteta Juliana Coelho nessa entrevista concedida ao ArchDaily.

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Assentamento Roraima. Cortesia de ACNUR

Em contraponto a esta estrutura estão as invenções do arquiteto japonês Shigeru Ban e seus protótipos de habitações temporárias, como as destinadas aos refugiados no assentamento de Kalobeyei, no Quênia. Segundo o arquiteto, “os projetos de abrigos devem cumprir com as normas nacionais de habitação, respondendo de forma responsável às condições e desafios climáticos locais, proporcionando soluções sustentáveis". Com tal abordagem, Ban cria abrigos utilizando materiais ecológicos e disponíveis nos arredores, incluindo elementos inusitados como tubos papelão no caso do Campo de Refugiados de Byumba, Ruanda, iniciativa também da ACNUR.

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Projeto de Shigeru Ban na costa sudeste do Sri Lanka, após a destruição causada por um tsunami em 2004. Image © Dominic Sansoni
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Abrigos de Emergência de Papel para ACNUR. Imagem © Shigeru Ban Architects

Entretanto, além dessas propostas que são – de certa forma – mais palpáveis, há inúmeras iniciativas que fomentam a criação de estratégias nada convencionais para auxiliar na questão dos abrigos para os refugiados. Entre elas está a proposta de Abeer Seikaly intitulada Weaving A Home, um abrigo têxtil desmontável pode se adaptar a vários climas e, ao mesmo tempo, proporcionar os confortos da vida contemporânea, como aquecimento, água corrente e eletricidade. Ele é composto por tubos de plástico de alta-resistência moldados em curvas sinodais e costurados dentro de uma membrana têxtil elástica. Segundo Seikaly, neste espaço, os refugiados “podem encontrar um lugar para se distanciar de seus mundos turbulentos, um lugar para tecer a tapeçaria de suas novas vidas."

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Abeer Seikaly propõe abrigo têxtil para refugiados. Cortesia de Abeer Seikaly

O abrigo é, portanto, o primeiro formato de individualidade que o refugiado encontra ao chegar no país de acolhida e, por isso, além de todos os desafios técnicos e ambientais, ele precisa também representar uma certa reconfiguração da casa como algo não estanque, uma dualidade entre o que simboliza permanência em uma configuração temporária. Trata-se de uma linha tênue entre contribuir na recuperação dos traumas físicos e psicológicos das vítimas e no acolhimento de um lar, sem, no entanto, criar situações que possam transformar em permanente aquilo que foi projetado para ser temporário.

Além do âmbito individual, as relações sociais comunitárias traçadas nesses ambientes também são de fundamental importância. O senso de uma nova comunidade é estabelecido com base no compartilhamento de vivências similares, fortalecendo o indivíduo por meio da sociabilidade. Por isso, os espaços comunitários são um importante ponto a ser analisado dentro dos assentamentos e espaços de acolhimento. Dentre eles, podemos destacar a iniciativa da Emergency Architecture & Human Rights, na construção de salas de aula para as crianças sírias refugiadas. Para dar suporte ao ensino, as salas foram construídas com adobe, arquitetura tradicional das casas colmeia de Mali e construções vernáculas da Síria originárias de Aleppo e Homs, de onde provêm muitos dos refugiados. Devido à escolha limitada de métodos e materiais de construção, e ao ambiente severo, o estilo de colmeia é uma solução viável para uma construção escolar. Este tipo de técnica não requer reforços de alta resistência à tração e pode ser construída rapidamente com mão-de-obra não qualificada, com melhor desempenho do que tendas, blocos de cimento e chapas onduladas em termos de isolamento térmico e custos de construção reduzidos pela metade.

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100 Salas de Aula para Crianças Refugiadas / Emergency Architecture & Human Rights. © Martina Rubino

Ainda reafirmando a máxima de que dentro de programas humanitários as crianças muitas vezes se tornam invisíveis, os arquitetos da CatalyticAction projetaram e construíram um parque infantil para as crianças refugiadas da Síria. Este projeto visa contestar essa noção e expandir as competências do que é considerado necessário em situações de emergência, afirmando que os espaços lúdicos são fundamentais para que as crianças possam desenvolver a confiança nelas mesmas. O parque foi projetado com requisitos sugeridos pelas próprias crianças, com exercícios completos que lhes permitiam expressar suas próprias ideias. Tão importante quanto a utilização do espaço, foi o seu processo de desenvolvimento. O cuidado em envolver as crianças desde o início do projeto até a construção foi gesto imprescindível para fomentar o sentimento de pertencimento em relação ao parque, uma sensação tão importante e que está muito fragilizada nessa condição.

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CatalyticAction projeta parques infantis para crianças refugiadas no Líbano. Cortesia de CatalyticAction
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CatalyticAction projeta parques infantis para crianças refugiadas no Líbano. Cortesia de CatalyticAction

Esse mesmo grupo de arquitetos também é responsável pela Escola de Refugiados de Jarahieh, no Líbano, onde vivem 500.000 crianças deslocadas da Síria. Nela, algumas estratégias de construção incomuns foram implementadas como, por exemplo, as experiências com lã de ovelha de origem local como material isolante sonoro. Como 72% de todas as ovelhas do Líbano ficam em Bekaa, esta estratégia não era apenas sustentável, mas também apoiava os agricultores e trabalhadores locais contratados para limpar e secar a lã. O próprio processo de construção, portanto, já foi fundamental para estabelecer laços tanto entre os próprios refugiados como entre eles e a comunidade ao redor.

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Jarahieh Refugee School / CatalyticAction. Cortesia de CatalyticAction
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Jarahieh Refugee School / CatalyticAction. Cortesia de CatalyticAction

A escola Jarahieh também não é apenas uma escola para crianças; depois das 16 horas é colégio para adultos e aos finais de semana funciona como cinema público e local de distribuição de ajuda. A praça formada entre os seis pequenos edifícios cria uma área pública para todos os moradores do campo de refugiados e, durante um potencial desastre natural, como uma enchente ou tempestade de neve, os edifícios funcionarão como abrigo comunitário. Além de tudo, quando não for mais necessária, a estrutura pode ser totalmente desmontada e recriada em outro local, uma característica que está bastante presente nos projetos deste gênero, tratando sempre a questão da temporalidade como uma premissa de desenho.

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Jarahieh Refugee School / CatalyticAction. Cortesia de CatalyticAction

Falando em espaços comunitários, a Maidan Tent é uma resposta interessante para essa questão. Trata-se de uma proposta para um centro social em um campo de refugiados em Ritsona, Grécia, como uma área comunal para descontrair o trauma psicológico induzido pela guerra, perseguição e migração forçada. Segundo os próprios arquitetos, a estrutura de 200 m2, feita em alumínio e coberta por um tecido resistente, proporciona um ambiente protegido e seguro para até 100 pessoas, com componentes padronizados que permitem fácil instalação e manutenção.

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Maidan Tent: uma resposta arquitetônica para a crise de refugiados na Europa. © Filippo Bolognese
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Maidan Tent: uma resposta arquitetônica para a crise de refugiados na Europa. © Filippo Bolognese

Agora, aproximando-se do que poderia ser um modelo a ser seguido, um dos exemplos mais interessantes de centro de acolhimento, tanto nos módulos individuais como nas relações entre eles, é o Centro de Acolhimento Temporário para Refugiados e Viajantes na França. Projetado para 400 pessoas, sendo 350 refugiados e 50 da comunidade cigana, ele acolhe famílias por no máximo 6 meses. Sua arquitetura responde a uma pergunta importante, que remete ao questionamento do início do texto, como oferecer dignidade e funcionalidade para uma população vulnerável com diferentes culturas? Para isso, o projeto foi pensado como uma pequena cidade, apostando na noção comum do que é o habitar, independentemente da origem geográfica. Entre os espaços coletivos e os mais íntimos, todos se assemelham a uma vida em comunidade. Da ágora grega à praça da igreja cristã, as pessoas organizam suas vidas entorno dessa transição entre o coletivo e o privativo, da sociabilidade para a introversão. A obra foi construída em apenas 4 anos e teve sua estrutura pensada para uma “segunda vida”, já que o abrigo foi concebido para permanecer no local por apenas 5 anos.

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Centro de Acolhimento Temporário para Refugiados e Viajantes / Atelier RITA. © David Boureau
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Centro de Acolhimento Temporário para Refugiados e Viajantes / Atelier RITA. © David Boureau
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Centro de Acolhimento Temporário para Refugiados e Viajantes / Atelier RITA. © David Boureau

Apesar desses bons exemplos e iniciativas, a questão dos refugiados ainda é um tema que precisa ser muito debatido, não somente no âmbito arquitetônico dos assentamentos, como foi explorado aqui, mas também no urbanístico, na sua relação e inserção nas cidades. São projetos complexos que precisam entender a dimensão subjetiva que seus usuários carregam indo além de uma mera resposta física.

Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Migrações. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Arquitetura do acolhimento: a dimensão subjetiva dos projetos de assentamentos para migrantes e refugiados" 31 Jul 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/965122/arquitetura-do-acolhimento-a-dimensao-subjetiva-dos-projetos-de-assentamentos-para-migrantes-e-refugiados> ISSN 0719-8906

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